Me conta um conto: ASSINTONIA

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ASSINTONIA
O ano era de 1987, frio de renguear cusco, num rigoroso inverno típico sul-rio-grandense. Kesley, um gaúcho de meia-idade e dono de um talento inquestionável, aquecia seu coração com a chama que insistia em permanecer-se acesa: o sonho de ser um famoso artista musical, vocacionado desde guri e embalado no regaço paterno.
_Bah! vamos lá então! mais um dia de trabalho entusiasmante. Dizia Kesley sempre irônico e abichornado ao preparar seu chimarrão às 6h da matina como uma manobra de aquecimento antes de ir para o trabalho.
_Bom dia, professor!
_ Bom dia, Tchê!
Com certeza, este era o momento mais caloroso e cordial do seu dia: o cumprimento do porteira da escola mesmo após 10 minutos de atraso.
_ Daí, você passa uma vida se dedicando a algo que realmente gosta para acabar fazendo o que realmente desgosta. Arrazoava consigo.
Kesley era maestro no contra turno de uma banda de ensino fundamental um tanto quanto desafinado. Mandavam muito bem no “dó”, era tão ruim que dava até dó de ouvir.
_Barbaridade! Um dia largo de mão e vou correr atrás de meus sonhos! Talvez eu perca pelo o menos uns quilos.
Na maestria, tentava sintonizar os músicos que sempre eram dispersos por todos os infortúnios: Um trombonista perde sua chave de escape, um trompetista usa seu instrumento para aspirar poeira do chão. Calebe, um saxofonista, finge tocar enquanto olha para seu Walkman que após ser flagrado joga o aparelho dentro do sax de uma colega ao lado.
_Piá, ajuda aí! Era o pedido nunca atendido pelos alunos.
O professor segue com a regência, aponta para Raquel insinuando que está na vez dela:
_ Eu, professor? Sorry!
Sem êxito, distraída demais, esqueceu de levar seu instrumento.
Mas nem tudo está perdido, Manu, uma menina nordestina, segurando um trombone é sua última esperança. A garota faz um solo forte e com garra conseguindo alegrar o coração do mestre. A alegria de pobre dura pouco, as risadinhas dos demais alunos paralisam a performance.
O professor compartilha suas experiências com a música, fala do poder que ela tem, que até nos faz flutuar, é como se o instrumento falasse e sua melodia nos guiasse. E ousa ensaiar alguns passos perante a classe.
Seu momento de leveza é interrompido, de repente uma batida na porta
O coordenador com uma carta na mão e um sorriso no rosto queria lhe dar um chasque urgentemente:
_ Kesley, você foi selecionado para participar da turnê “10 anos sem Elvis” como cover do Elvis Presley. Vim correndo lhe falar pois sei que tu é muito fã, daí? Se inscreveu no calado né, gaúcho?
_ Bah! Eu não me inscrevi não. Fã eu sou de carteirinha, mas não acreditava que poderia ser escolhido para representar o estado gaúcho. Me caiu os butiá do bolso.
Em um loooongo momento de introspecção, o alívio que a interrupção provocara agora o apavora diante da nova realidade.
Ao retornar, ainda atucanado, foi indagado pela classe sobre o que ocorrera. E relatou tudo o que ouviu do coordenador, ainda em choque.
E ao som dos aplausos, numa sintonia ainda não ouvida, Matheus disse em tom de risos:
_ Tri afú! Professor, nós te inscrevemos, pois sabíamos de seu talento. Uma boa maneira de nos livrarmos também das aulas.
_Bah! Pare de arriar – retrucou Ana.
_ Professor, sabemos que o senhor não gosta de dar aulas e que seu sonho é viver de música. Pozolha, seu momento chegou!
_ Obrigado mesmo, turma! Estou sem palavras. Disse com olhos lacrimejantes.
O sino soou um tanto descompassado numa triste melodia de despedida.
A tristeza e alegria se misturam numa perfeita sintonia. Kesley se achou mergulhado num sentimento até então encoberto pela expectativa de uma vida idealizada e fundamentada num “talvez”: a empatia.
_ Eu não posso abandonar os guris. De uma maneira ou outra, fazem parte da minha vida simples e aquecem a chama de uma vida utópica, idealizada mas não necessariamente real.
Estava acostumado a culpar a vida medíocre que vivia ao fato de não ser um músico afamado como sonhava. Sim, era apenas sonho e não queria que se tornasse realidade, pois não teria mais como se esconder atrás de um sonho para justificar a vida meia-boca que levava.
_Pra que apagar o pavio que fumega? Vários tições juntas pegam fogo e podem aquecer e clarear muito mais como uma grande fogueira.
E no seu grande momento filosófico, pensando em seus pupilos, decidiu ficar e ressignificar seu sonho antigo e agora projetá-lo com cara nova e amplitude maior em uma nova geração de músicos, comunicando-o prontamente a direção.
6h da manhã. Kesley toma seu chimarrão, quase num talagaço, largou numa pernada até a escola pois não queria se atrasar.
_ Bah, Vivente!
_ Bom dia, professor!
O professor entra pelo corredor, com um largo sorriso no rosto, cumprimenta a todos pelos corredores, segue em direção à classe, abre a porta silenciosamente e diz:
_Bah, guris!
E em uníssono, como um lindo coral em que todas as vozes puderam ser percebidas, os alunos disseram:
_ Ala-putcha-tchê!

 

 

 

 

Cirlene da Silva Lima é licenciada em Letras pela Universidade de Brasília e Bacharelando em Teologia pelo Instituto de Teologia e Educação Gênesis. Atua como professora mediadora presencial do curso em Inglês Básico ofertado pelo Polo Universitário de Buritis em parceria com o IFNMG.

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